domingo, 22 de agosto de 2010

DO RIGOR DA CIÊNCIA E SOBRE A ARTE DA CARTOGRAFIA



"Dos gregos consta que Anaximandro e depois, seguindo seu exemplo, Dicearco, Cílax e Erastótenes foram os primeiros a desenhar cartas geográficas. Vestígios realmente históricos de mapas, todavia, só se encontram por volta de 500 a.c., quando Aristágoras de Mileto, ao pedir auxílio aos espartanos n_ insurreição dos jônios contra os persas, enviou junto um mapa, bem como na época de Sócrates, que fez com que Alcibíades, que se gabava de suas ricas propriedades, as procurasse num mapa" (1).


o (possível) primeiro mapamundi de Anaximandro.

Já desde o início, ao que parece, a história da cartografia está ligada á história da conquista e da posse. O conhecimento da relação entre comprimentos e larguras, alturas e profundidades é o conhecimento da relação entre massa, medida e poder, e ao mesmo tempo, se seguirmos as veredas ocultas dos ardis da razão, seu antídoto. A consciência da relação óbvia entre massa, medida e poder implica a consciência da sua relatividade, como demonstra o exemplo de Sócrates. Só aquele que sabe ler bem os mapas e interpretar corretamente as perspectivas, as perspectivas se abrirão, e ele não se enredará nas estreitas malhas das redes dos mapas e não se deixará lograr pela imagem enganadora dos globos e atlas.
Aquele que esboça a imagem do mundo e aquele que sabe interpretar essa imagem sabem que o rigor da ciência e a arte da cartografia são mera ficção, entremeada de ambição de poder, noções subjetivas e meras fantasmagorias, uma projeção provisória que, qual um projétil, só atinge uma ilusão de massa, se perde no vazio e acaba por explodir no vácuo.
Ficam para trás cartucho e buraco, que tomam o lugar do obscuro mistério que a massa era quando "terra incógnita". A medida é forma vacante, o poder é enganador e, no fim das contas, construído somente sobre areia - areia que tudo cobre e que, inexoravelmente, preenche o vácuo com milhões de partículas, massa atomizada, reduzida á menor das medidas, indomável e imprevisível porque no fim o deserto esta em toda parte.
"Uma carta geográfica deve dar uma imagem tão fiel quanto possível de uma parte de toda a superfície terrestre. Como tais imagens têm que ser projetadas de um globo para um plano, elas não podem trazer a posição exata de cada lugar, como uma figura matemática traz a posição calculada de um ou mais dos seus pontos, mas sim apenas representações aproximadas ou semelhantes de uma parte da superfície terrestre" (2).
Que cartas geográficas podem, na melhor das hipóteses, representar uma aproximação da realidade, e que entre o mundo e a sua imagem aproximada existe uma flagrante lacuna, apesar de - e, como se evidenciará mais tarde justamente em virtude do aperfeiçoamento dos processos mimétricos, é demonstrado pela história da cartografia, de Ptolomeu a Mercator e a Perthes, e muito mais além. Por outro lado, ela também ensina que mapas errados muitas vezes conduzem ao alvo, e mapas corretos ao descaminho. Inegável é que as imagens do mundo também se manifestam concepções do mundo, e mesmo termo aparentemente tão neutro como "orientação" revela o papel decisivo do Ocidente na sua criação.

Não admira, portanto, que ao par da história da orientação exista também uma menos conhecida história da desorientação. No ano de 1936, o artista Te García, nascido do outro lado do equador, sugeriu que se virasse os mapas sobretudo os da América do Sul - de ponta-cabeça, para adaptá-los á sua v da realidade. É óbvio que cada mapa, em sua relatividade, omite muitas outras faces e aspectos da realidade; não importa quão exatamente ele pareça reproduzir uma realidade, ele sempre estará produzindo uma só perspectiva da realidade. Um mapa é uma alegoria, ou seja a figuração de uma idéia abstra uma metáfora, na qual a realidade é sempre representada como uma relação em função dessa relação. Esta é, também, uma das razões porque o mapa, e. muitas obras de artistas não eurocentrados - de Ana Bella Geiger a Guillermo Kuitca - é um topos, uma forma de perceber realidade e efetividade, que o Ocidente parece ter perdido assaz fácil e prazerosamente no decurso da história. Nesse reino, a arte da cartografia atingiu uma tal perfeição, que o mapa de uma única província ocupava o espaço de uma cidade inteira, e o mapa reino o de uma província. Com o tempo, até esses mapas desmesurados deixaram de satisfazer, e os colégios dos cartógrafos elaboraram um mapa d reino que tinha as dimensões exatas do reino, e a ele correspondia em todos pontos. As gerações seguintes, não mais tão dedicadas ao estudo da cartografia, acharam que esse mapa tão amplo era supérfulo, e abandonara no, não sem ofensa á piedade, á inclemência do sol e dos invernos. Nos desertos do oeste mantiveram-se até hoje ruínas fragmentadas do mapa, habitadas Por animais e por mendigos; em todo o país não existe outro remanescente das ciências geográficas, além deste" (3).


 Ana Bella Geiger. O Novo Atlas I, 1977


Guillermo Kuitca
 
Cristina Barroso, Newspaper String, 2004, Mixed Media on Canvas, 140 x 170 cm

Cristina Barroso situa-se entre essas tradições e histórias. Seus trabalhos representam mundos de imagens e imagens do mundo, nas quais os mais diferentes planos da realidade convergem numa constelação de imagens da mais diversa proveniência, feitura e estrutura, se refletem mutuamente e nisso mudam de significado - comentando o contexto, comentadas no contexto.
Distingue-se mapas e plantas de cidades, retângulos e círculos, cifras e sinl sistemas e estruturas, o natural e o construido, o arcaico e o efêmero, o contemporâneo e o trivial, que se amalgamam numa textura singular, na qual aparentemente abstrato se torna concreto e o aparentemente concreto abstrato. Imagens reais e horizontes virtuais se confundem constantemente, unindo-se e separando-se em dependência da perspectiva e do ponto de vista. Esses quadros abertos para todos os lados representam sistemas de interrelações que, nos limites entre dentro e fora, entre centro e periferia, fazem congruir os múltiplos horizontes de diferente significado que reúnem em si - sem jamais fixá-los. Pelo contrário, estes existem quase que en passant provisórios e profundos, como alusões ostensivas e obscuras, como imaginações e dissimulações, que nada representam além de si mesmas e o resto do mundo.
Inignorável é a presença dessas imagens em meio a significados flutuantes, indispensável é seu lugar em meio a deslocações, inevitável é seu corpo em meio ás delimitações recíprocas.
Cada forma é ao mesmo tempo lugar geométrico, ponto de vista, símbolo, cifra e sinal; os contextos das imagens ditam e modificam, encobrem e descobrem relações entre espaço e tempo, que são ambíguas; as cores oscilam entre a materialidade e a imaterialidade, entre o ser e o parecer, no seu luzir e reluzir, gretadas e porosas, transparentes como vidro, líquidas como água, pesadas como asfalto, opacas como terra, verniz endurecido, sal oxidado, mistura de ácidos e bases - tudo química, química do Universo, alquimia.
Na realidade dessa artificialidade reflete-se a artificialidade da realidade, que necessita da construção para poder tornar-se experiência. A imagem é híbrica e andrógina, projeção e reflexão, construção e constituição de realidade, reconstrução e reconstituição entre os horizontes. As imagens são Jano e Hermafrodito ao mesmo tempo - entre o frio da mente e o calor do corpo.
Típico das obras de Cristina Barroso é que nelas formas e sinais se sobrepõem, se deslocam e se transfiguram mutuamente; realidade e virtualidade se refletem uma na outra e se transformam no seu oposto, se condicionam e entrecruzam. Um círculo é um ponto e um lugar, uma mancha e uma marca; um retângulo é uma área quadrangular, um elemento de exclusão e de inclusão, um bloco cerrado em si e uma abertura enquadrada; uma linha é ligação e separação, traço de um curso e curso de um traço.
A simultaneidade de inclusão e exclusão conecta as diversas dimensões da percepção e os diferentes potenciais de espaço e tempo num sistema permeável de superfícies, que se define como concatenação estruturada de aberturas - pairando entre os lugares - forma amorfa, a única capaz de conter, ao mesmo tempo, nada e plenitude.
Esses entrelaçados de inter-relações não têm um centro, mas estão sempre a caminho de um centro, sem indicar onde fica esse centro - o espaço está entre espaços, a forma entre formas, o símbolo entre símbolos, a cor entre cores relativados, concatenados, interligados e entrelaçados em infinitas relações de proximidade e de distância, entre o palpável e o impalpável, o encoberto e o descoberto, o óbvio e o insinuado. Trata-se da congruência de movimentos divergentes, jamais de sua paralisação.
Nos trabalhos recentes de Cristina Barroso, as referências se estendem atê o imensurável e os parámetros do significado se prolongam no infinito. Nuvens de estrelas se condensam em imagens de cunho simbólico no escuro do céu. Tempo se imobiliza sob a forma de movimento finito fixado no espaço, constelação cósmica, lugar em meio ao infinito. A multiplicidade de perspectivas cede lugar a uma visão sem perspectiva determinada, na qual as imagens e os símbolos emergem qual manifestação luzente o reino sombrio da ilusão, equívocas em sua clareza. Uma distância remota envolve as figuras, que parecem esvanecer-se no nada de uma aura radiosa, e ao mesmo tempo são contornos nítidos e firmes num espaço imaginário, onde o incorpóreo se materializa.
Nos quadros, o mundo aparece como pura projeção, na qual o cosmo Joma forma e se transforma em experiência - real e concreta, aparente e abstrata. O quadro é superfície e objeto, lugar da aparição e aparição do lugar, que reúne em si todas as formas latentes e agudas do espaço e do tempo, integrando-as sem misturá-Ias em sua variedade.

KARIN STEMPEL

Notas:
1 Hermann J. Meyer. Novo Léxico de Conversação. 1872 Tomo X. pág. 542
2 Hermann J. Meyer. Novo Léxico de Conversação. 1872 Tomo X. pág. 541
3 Suárez Miranda. Viajes de Varones Prudentes. libro cuorto. cap XIV Lérida. 1658. seiecionado por Jorge Luis Borges.


*Texto anteriormente publicado no catálago da exposição da artista Cristina Barroso no Dortmunder Kunstverein. em 1994. A tradução do alemão pora o português ê de Barbara Winter

cartografia, moda ou arte?


Obras de Elisabeth Lecourt feitas com mapas.

E por falar em Cartografia...

Cartografia é a arte ou a ciência de produzir mapas.


As cartografias de Cláudia Regina Telles compõem com palavras/linhas, percursos poéticos, nos quais a trajetória da escrita desenha formas abstratas, que remetem à imagens de mapas/cartografias, que nomeia a exposição e também às séries. Cada série versa sobre um tema e recebe um título relacionado, como “Cartografias Íntimas” ou “Cartografia: Território Poético”.

A poética visual da artista traduziu sua expressão sobre/através de diversos materiais, superfícies como tecido, tela, papel de desenho e cartão e a própria parede do espaço de exposição.

As obras são abertas a interação através que acontece através da lupa, recurso mediador e que auxilia na leitura dos textos, na percepção dos traços da escritura e da tessitura das superfícies.


postado por Michelle Cunha

sábado, 14 de agosto de 2010

Cildo Meireles


Para relembrar nossa ultima aula, ai está a imagem de Cildo Meireles de "Inserções em Circuitos Ideológicos: Projeto Coca-cola"


Leia o depoimento de Cildo Meireles  sobre INSERÇÕES EM CIRCUITOS IDEOLÓGICOS (1970)*


Eu me lembro que em 1968-69-70, porque se sabia que estávamos começando a tangenciar o que interessava, já não trabalhávamos com metáforas (representações) de situações. Estava-se trabalhando com a situação mesmo, real. Por outro lado, o tipo de trabalho que se estava fazendo, tendia a se volatilizar e esta já era outra característica. Era um trabalho que, na verdade, não tinha mais aquele culto do objeto, puramente; as coisas existiam em função do que poderiam provocar no corpo social. Era exatamente o que se tinha na cabeça: trabalhar com a idéia de público. Naquele período, jogava-se tudo no trabalho e este visava atingir um número grande e indefinido de pessoas: essa coisa chamada público. Hoje em dia, corre-se inclusive o risco de fazer um trabalho sabendo exata­mente quem é que vai se interessar por ele. A noção de público, que é uma noção ampla e generosa, foi substituída (por deformação) pela noção de consumidor, que é aquela pequena fatia de público que teria o poder aquisitivo.

Na verdade, as "Inserções em circuitos ideológicos" nasceram da necessidade de se criar um sistema de circulação, de troca de informações, que não dependesse de nenhum tipo de controle centralizado. Uma língua. Um sis­tema que, na essência, se opusesse ao da imprensa, do rádio, da televisão, exemplos típicos de media que atingem de fato um público imenso, mas em cujo sistema de circulação está sempre presente um determinado controle e um determinado afunilamento da inserção. Quer dizer, neles a 'inserção' é exercida por uma elite que tem acesso aos níveis em que o sistema se desenvolve: sofisticação tecnológica envolvendo alta soma de dinheiro e/ou poder.

As "Inserções em circuitos ideológicos" nasceram com dois projetos: o projeto "Coca-Cola" e o projeto "Cédula". O trabalho começou com um texto que fiz em abril de 1970 e parte exatamente disso: 1) existem na sociedade deter­minados mecanismos de circulação (circuitos): 2) esses circuitos veiculam evidentemente a ideologia do produtor, mas ao mesmo tempo são passíveis de receber inserções na sua circulação: 3) e isso ocorre sempre que as pessoas as deflagrem.

As "Inserções em circuitos ideológicos" surgiram também da constatação de duas práticas mais ou menos usuais. As correntes de santos (aquelas cartas que você recebe, copia e envia para as pessoas) e as garrafas de náufragos jogadas ao mar. Essas práticas trazem implícita a noção do meio circulante, noção que se cristaliza mais nitidamente no caso do papel-moeda e, metaforicamente, nas embalagens de retorno (as garrafas de bebidas, por exemplo).

Do meu ponto de vista, o importante no projeto foi a introdução do conceito de 'circuito', isolando-o e fixando-o. E esse conceito que determina a carga dialética do trabalho, uma vez que parasita ria todo e qualquer esforço contido na essência mesma do processo (media). Quer dizer, a embalagem veicula sempre uma ideologia. Então, a idéia inicial era a constatação de 'circuito' (natural), que existe e sobre o qual é possível fazer um trabalho real. Na verdade, o caráter da 'inserção' nesse circuito seria sempre o de contra-informação.

Capitalizaria a sofisticação do meio em proveito de uma ampliação da igualdade de acesso à comunicação de massa, vale dizer, em proveito de uma neutralização da propaganda ideológica original (da indústria ou do Estado), que é sempre anestesiante. É uma oposição entre consciência (inserção) e anestesia (circuito), considerando-se consciência como função de arte e anestesia como função de indústria. Porque todo circuito industrial normal­mente é amplo, mas é alienante (ado).

Por pressuposto, a arte teria uma função social e teria mais meios de ser densamente consciente. Maior densidade de consciência em relação à sociedade da qual emerge. E o papel da indústria é exatamente o contrário disso. Tal qual existe hoje, a força da indústria se baseia no maior coeficiente possível de alienação. Então as anotações sobre o projeto "Inserções em circuitos ideológicos" opunham justamente a arte à indústria.
(...)

Porque tem uma transação em artes plásticas que se baseia ou na mística da obra em si (embalagem: tela, etc.) ou na mística do autor (Salvador Dali ou Andy Warhol, por oposição, são exemplos vivos e atuais): ou parte para a mística do mercado (o jogo da propriedade: valor de troca). A rigor, nenhum desses aspectos deveria ser prioritário. No momento em que há distinções nessa ou naquela direção, surge a distinção de quem pode fazer arte e quem não pode fazer. Tal como eu tinha pensado, as "Inserções" só existiriam na medida em que não fossem mais a obra de uma pessoa. Quer dizer, o trabalho só existe na medida em que outras pessoas o pratiquem. Uma outra coisa que se coloca, então, é a idéia da necessidade do anonimato. A questão do anonimato envolve por extensão a questão da propriedade. Não se trabalharia mais com o objeto, pois o objeto seria uma prática, uma coisa sobre a qual você não poderia ter nenhum tipo de controle ou propriedade. E tentaria colocar outras coisas: primeiro, atingiria mais gente, na medida em que você não precisaria ir até a informação, pois a informação iria até você; e, em decorrência, haveria condições de 'explodir' a noção de espaço sagrado.
(...)

Enquanto o museu, a galeria, a tela, forem um espaço sagrado da representação, tornam-se um triângulo das Bermudas: qualquer coisa, qualquer idéia que você colo­car lá vai ser automaticamente neutralizada. Acho que a gente tentou prioritariamente o compromisso com o público. Não com o comprador (mercado) de arte. Mas com a platéia mesmo. Esse rosto indeterminado, o elemento mais importante dessa estrutura. De trabalhar com essa maravilhosa possibilidade que as artes plásticas oferecem, de criar para cada nova idéia uma nova linguagem para expressá-la. Trabalhar sempre com essa possibilidade de transgressão ao nível do real. Quer dizer, fazer trabalhos que não existam simplesmente no espaço consentido, consagrado, sagrado. Que não aconteçam simplesmente ao nível de uma tela, de uma superfície, de uma representação. Não mais trabalhar com a metáfora da pólvora - trabalhar com a pólvora mesmo.


*Extraído do depoimento de CM registrado na pesquisa Ondas do corpo, de Antônio Manuel Copy-desk e montagem do texto: Eudoro Augusto Macieira. Publicado no Livro "Cildo Meireles" da FUNARTE. Rio de Janeiro, 1981.

exposição Obra Inventário


Nosso encontro hoje será no TCU para mesa redonda com Atila, curador da exposição e os artistas.